Fonte: https://veja.abril.com.br/
Companhias devem cuidar do bem-estar psíquico de seus funcionários — e podem receber sanções se descumprirem as novas normas
Por Bárbara Nór
Delache, da Foundever: saúde mental é chave na retenção (./Divulgação)
A partir de 25 de maio, empresas que atuam no Brasil precisarão incluir a saúde mental em sua lista de responsabilidades obrigatórias — da mesma forma que já fazem com os equipamentos de proteção individual (EPIs), como capacetes, luvas ou máscaras. A nova versão da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho e Emprego, passa a exigir o mapeamento e gerenciamento dos riscos psicossociais — fatores organizacionais, culturais e relacionais que podem contribuir para o adoecimento mental dos trabalhadores.
A regulamentação surge em meio a um cenário preocupante: em 2024, o Brasil registrou mais de 472 000 afastamentos por motivos de saúde mental, o maior número da última década e um aumento de 68% em relação ao ano anterior. Os transtornos de ansiedade lideram os afastamentos, seguidos pelos casos de depressão, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social.
A novidade trazida pela NR-1 não está em reconhecer que o trabalho pode causardoença, mas em exigir uma gestão sistemática e preventiva de fatores de risco.Tatiana Pimenta, presidente da Vittude, plataforma de terapia on-line econsultoria em saúde corporativa, explica que a norma vai além dos programastradicionais que muitas empresas já mantêm. “O fato de uma empresa ter umprograma de saúde mental e oferecer consulta psicológica não significa que elaestá fazendo gerenciamento de riscos psicossociais”, diz Tatiana.
Ela ressalta que consultas psicológicas isoladas ou ações pontuais não sãosuficientes para lidar com sobrecarga, metas abusivas ou lideranças tóxicas. Énecessário aplicar instrumentos objetivos, como escalas psicométricas, paramensurar variáveis como risco de burnout, assédio ou ideação suicida. Essesdados também podem indicar onde há perda de produtividade e maior rotatividade. Ainda assim, observa Tatiana, as empresas têm se mostradoresistentes à mudança.
Isso se manifesta, por exemplo, em iniciativas como a da FecomercioSP, entidadeque representa o setor de varejo e serviços no estado de São Paulo. Em abril, afederação solicitou ao governo a prorrogação da entrada em vigência da normapor um ano, alegando que as mudanças trariam custos extras e incertezas nafiscalização, especialmente para pequenas e médias empresas.
Menos estresse: iniciativas de cuidado reduzem o absenteísmo
A percepção de que o tema é subjetivo demais para ser regulamentado ainda écomum. Fatima Macedo, diretora de certificação e excelência da AssociaçãoBrasileira de Qualidade de Vida (ABQV), ressalta que esse é um equívoco.“Quando muita gente sente o mesmo, isso deixa de ser só percepção”, afirmaFatima. Ela explica que, embora se trate de questões emocionais, é possívelmensurá-las com consistência e comparabilidade — quando diversoscolaboradores apontam os mesmos problemas, o dado se torna quantitativo e,portanto, passível de gestão.
Fatima também lembra que outras normas, como a NR-17, já mencionavam osriscos psicossociais. A diferença agora é que a NR-1 dá muito mais destaque para aobrigatoriedade de gerir os fatores psicossociais — e, com isso, pode haverconsequências jurídicas.
Algumas empresas já vêm aplicando estratégias mais estruturadas de cuidado eprevenção à saúde mental. A Nestlé Brasil lançou, em 2024, o projeto Parceiros doB.E.M., em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo epretende investir 1,5 milhão de reais no programa ao longo de 2025. A iniciativavisa a capacitar 600 funcionários para reconhecer sinais de sofrimento psíquico eorientar colegas aos canais de apoio da empresa. Fabricio Pavarin, gerente-executivo de saúde e bem-estar da Nestlé, explica que a estratégia começou com adesmistificação do tema junto às lideranças, em conversas com o presidente daempresa e em lives com os funcionários. “Procurar ajuda para problemas de saúdemental precisa se tornar tão natural quanto procurar atendimento porquequebrou o braço”, afirma Pavarin. Ele reconhece que, ao dar visibilidade ao tema,é possível que os números “piorem” inicialmente, mas esse movimento é esperadoe necessário.
Equilíbrio: programa da Nestlé estimula atividades físicas e mentais (./Divulgação)
Já o Grupo Cornélio Brennand, presente em sete estados e com atuação emenergia renovável, produção de vidros planos e desenvolvimento imobiliário,passou a aplicar, em 2023, questionários específicos de riscos psicossociais emtodas as unidades. Catharina Machado Ferreira, diretora de Pessoas &Sustentabilidade do grupo, conta que a medida foi resultado de um processoiniciado durante a pandemia, que incluiu ações como check-ups emocionais, rodasde conversa e treinamentos com lideranças. Ela destaca que muitas pessoas quesofrem com questões de saúde mental nem sempre percebem o problema.“Esperar que elas peçam ajuda pode ser tarde demais”, afirma Catharina. Deacordo com ela, a identificação ativa dos riscos permite agir preventivamente etambém avaliar a efetividade dos programas em curso, otimizando os recursosinvestidos em bem-estar.
Para muitas empresas, o maior desafio não é aplicar a pesquisa, mas lidar com osresultados. Juciano Massacani, presidente da GraalSeg, consultoria em segurançae medicina do trabalho, relata que, muitas vezes, os dados revelam problemascausados por dinâmicas internas difíceis de enfrentar — como culturasorganizacionais autoritárias ou estilos de liderança inadequados. Além disso,existe o temor por parte dos funcionários de que a exposição de vulnerabilidadespossa resultar em retaliação. “As pessoas têm medo de falar e sofrer represálias”,afirma. Massacani observa que ainda há quem veja a saúde no trabalho mais comoum gasto do que como investimento estratégico.
As empresas que não se adequarem à nova NR-1 poderão sofrer multas do Ministério do Trabalho, como já ocorre com outras normas de segurança. Casosmais graves, principalmente quando envolvem denúncias ou fiscalizações doMinistério Público do Trabalho, podem gerar cobranças milionárias. Inicialmente,as fiscalizações devem focar setores que costumam ter mais problemas de saúdemental, como teleatendimento e bancos.
O advogado Alexandre de Almeida Cardoso, sócio da área trabalhista do escritórioTozziniFreire Advogados, conta que, em regra, espera-se que as primeirasfiscalizações sejam educativas. “A recomendação é registrar tudo — desde osdados coletados até as ações preventivas e corretivas tomadas”, diz. Na sua visão,o fato de até agora não haver um manual oficial de implementação tem geradomais incertezas entre as empresas.
Enquanto algumas organizações aguardam definições mais claras, outras jácolhem os frutos de investimentos em saúde mental. Um exemplo é a Foundever,multinacional francesa de centrais de atendimento com mais de 5000 funcionários no Brasil, que em 2021 lançou o programa Everbetter. Laurent Delache, presidente da empresa no país, explica que os primeiros diagnósticosmostravam um clima organizacional frágil, com alta rotatividade e baixoengajamento — algo comum em um setor que lida com reclamações constantes eequipes jovens em início de carreira, além de pessoas da periferia, pessoas trans erefugiadas. Os resultados foram expressivos: o absenteísmo caiu de 13,4% para8,5% e o NPS (índice de satisfação do cliente) subiu de 20 para 70 pontos. Um dosindicadores mais relevantes para mostrar o aumento da segurança psicológica,para Delache, foi o crescimento das denúncias de assédio, que hoje são levadas aum comitê que oferece suporte às vítimas e pune os agressores. A saúde mentaltornou-se um pilar da estratégia de retenção da Foundever, segundo ele.
Outro avanço importante foi o diálogo com contratantes, com a empresanegociando metas mais realistas baseadas em dados que mostram os limitesoperacionais sem comprometer a saúde dos funcionários. Essa abordagemrepresenta uma mudança cultural significativa em um setor com histórico deimpacto negativo na saúde mental. “Quando o cliente demanda uma coisaimpossível, a gente prefere não fazer”, afirma Delache. “Não é saudável e não ésustentável.” É um bom princípio.